Beijo (Constantin Brancusi, 1907 (1º versão), pedra, 28 cm)
Dois troncos unidos num abraço, dois lábios que se tocam – e assim nasce um beijo selvagem, livre, provocante. Um beijo que, sem desprezar a alma, se realiza mais na carnalidade do que na sensualidade. Por isso, esta escultura nos remete para o mito das origens e nos coloca a questão: como teria sido o primeiro beijo?
Bem vistas as coisas, esta escultura é quase pura abstracção. Talhados na pedra a partir de formas básicas, de uma simplicidade absoluta, os dois protagonistas só se distinguem o suficiente para serem identificados como dois seres diferentes. Pode-se dizer que se assiste a uma estilização do humano para o tornar compreensível independentemente da cultura. Se as formas esculpidas por Brancusi são reconhecíveis e assimiláveis da Islândia às Ilhas Fiji, o mesmo já não acontece com Rodin, mais comprometido com o imaginário ocidental.
Esta escultura, que tem funções de monumento funerário, ao assumir-se como um monólito vertical sem qualquer decoração de superfície, estático e intemporal, opõe-se, formal e conceptualmente, à escultura de Rodin. O que em Rodin era uma figuração – embora tendendo já para o abstracto –, em Brancusi é uma representação simbólica do próprio beijo em si, da sua pureza e do seu carácter universal.
Reconhece-se, assim, uma importante valorização da materialidade e do carácter simbólico da arte, apanágio do século XX. Brancusi buscava a essência das coisas, sendo o misticismo e a espiritualidade duas das características das suas obras. Crescer na Roménia rural, em que alhos atrás da porta emparelhavam com o avental das mulheres, deve ter deixado as suas marcas. Dai que a sua obra se aproxime da escultura africana e oriental, mais primitiva, mais ligada ao homem e à terra.
E agora, apenas por curiosidade, deixo-vos aqui alguma informação que recolhi em várias enciclopédias relativa à simbologia e significado do beijo e da boca na arte universal.
Beijo – É o símbolo da união e da adesão mútuas que na Antiguidade assumiu um significado espiritual. No Zohar, verificamos que existe uma interpretação mística do vocábulo beijo, relacionada com o beijo divino: “Que ele me beije com beijos da sua boca”. Na verdade, beijo significa adesão de espírito a espírito, daí que o órgão corporal do beijo seja a boca. Pois é também pela boca que se dão os beijos de amor, unindo inseparavelmente espírito a espírito. Ou seja, aquele cuja alma sai ao beijar adere a um outro espírito, do qual jamais se separará. A esta união chama-se beijo.
Para Guillaume de Saint – Thierry, o beijo é o sinal da unidade.
Como dizia São Bernardo, o Espírito Santo é o beijo da boca, trocado entre o Pai e o Filho, beijo mútuo de igual para igual e reservado somente a eles. O beijo do Espírito Santo ao homem e que reproduz o beijo da Deidade trinitária é um beijo que se reproduz, que se comunica a um outro: o beijo do beijo. O homem está assim unido pelo beijo a Deus.
Sendo sinal de submissão, de concórdia, de respeito e amor, o beijo era praticado pelos iniciados ao Mistério de Ceres: pois testemunhava a sua comunhão espiritual.
Na Antiguidade, beijavam-se os pés e os joelhos dos reis, juízes, dos homens que tinham reputação de santidade e beijavam-se igualmente as estátuas, a fim de implorar a sua protecção.
Na sociedade feudal, o beijo criava inúmeras dificuldades, quando era uma dama a receber ou a prestar homenagem. Símbolo de união, o beijo guardava, de facto, a polivalência, a ambiguidade, das variadas formas de união.
Actualmente, existe ainda o costume de beijar as relíquias dos santos, expostas à veneração dos fiéis.
Boca – É o ponto de saída e fonte do sopro, da palavra e por onde também passa o alimento. É o símbolo do poder criador e da insuflação da alma. Sendo o órgão da palavra e do sopro, simboliza também um elevado grau de consciência, uma capacidade organizadora através da razão.
No entanto, como qualquer símbolo, tem o seu lado negativo. A força capaz de elevar, construir, animar e ordenar é igualmente capaz de rebaixar, destruir, matar e confundir, pois a boca derruba tão depressa como edifica os seus castelos de palavras. A boca tanto pode ser representada pelas fauces do monstro como pelos lábios do anjo; ela tanto é a porta do paraíso como a dos infernos.
No Egipto, quando alguém morria, praticava-se um rito chamado “ a abertura da boca”, destinada a preservar o corpo do defunto para que a sua alma, o Ká, sobrevivesse e desempenhasse as suas novas funções e tal era conseguido através do complexo processo de mumificação. Após este processo, a alma era submetida a um rigoroso julgamento na presença de Osíris, sobre os actos praticados durante a vida; esta cerimónia assegura ao morto a faculdade de proferir a verdade. Um disco solar colocado sobre a boca revela que a própria vida do Deus Sol, Rá, é partilhada pelo defunto. O Livro dos Mortos do Egipto antigo contém orações como esta: “ Devolve-me a minha boca para falar...”
No Sul da Gália, algumas esculturas representam umas cabeças sem boca. Tal deve-se ao facto de que, quando o
file (poeta - adivinho) irlandês Morann, filho do usurpador Cairpre, nasceu, foi lançado à água por ordem do seu pai porque não tinha boca. Esta ausência de boca pode relacionar-se com a eloquência, a poesia ou a expressão do pensamento. E assim “como o cego é dotado de clarividência, também o homem sem boca é orador, o poeta de uma linguagem diferente da vulgar”.
Em muitas tradições a boca e o fogo estão associados, com dragões a vomitarem fogo, o deus-Sol, daí que Jung (um dos fundadores da moderna psiquiatria) admita uma ligação sinestésica, uma relação profunda entre boca e fogo. Como, por exemplo, as expressões “boca de incêndio” como “boca de água”. Que representam duas das características do homem: o uso da palavra e o uso do fogo. O simbolismo da boca tem a sua origem nas mesmas fontes do simbolismo do fogo e apresenta igualmente o duplo aspecto do deus indiano da manifestação, Ágni, criador e destruidor.
A boca é também o ponto de partida ou de convergência de duas direcções, simboliza a origem das oposições, dos contrários, das ambiguidades.
Fiquem bem. Vemo-nos por aí…