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Novas aventuras em mim (menor)

Aventuras em mim (menor)? Escrever é aventura, é incógnita. Viagem de dedos por sonhos, desejos, fantasias, pequenas e grandes coisas sobre mim e o mundo à minha volta. Desejo de partilha, também. De sentimentos, emoções, momentos, vivências, silêncios até. Quanto ao “menor”, é uma brincadeira, um pequeno trocadilho com a nota musical Mi menor. É, também, uma medida da minha humildade, da consciência brutal das minhas limitações como escriba.

29 setembro 2005

A vida em 24 linhas

Mais do que o poema que gostaria de ter escrito, estas são palavras que gostaria de viver... Obrigado, Inês, por me dares a descobrir Pablo Neruda. Pois!, eu pecador me confesso: quase nada li do bardo chileno...

Morre lentamente quem não viaja,
quem não lê, quem não ouve música,
quem destrói o seu amor próprio,
quem não se deixa ajudar.

Morre lentamente quem se transforma escravo do hábito,
repetindo todos os dias o mesmo trajecto,
quem não muda as marcas no supermercado,
não arrisca vestir uma cor nova,
não conversa com quem não conhece.

Morre lentamente quem evita uma paixão,
quem prefere o "preto no branco" e os "pontos nos is"
a um turbilhão de emoções indomáveis,
justamente as que resgatam brilho nos olhos,
sorrisos e soluços, coração aos tropeços, sentimentos.

Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho,
quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho,
quem não se permite, uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos.

Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da má sorte ou da
chuva incessante, desistindo de um projecto antes de iniciá-lo,
não perguntando sobre um assunto que desconhece
e não respondendo quando lhe indagam o que sabe.

Evitemos a morte em doses suaves, recordando sempre que estar vivo
exige um esforço muito maior do que o simples acto de respirar.
Estejamos vivos, então!

Pablo Neruda

Fiquem bem. Vemo-nos por aí...

14 setembro 2005

Postais de Cuba - Pecadilhos...

A tarde já me batia à janela, o vai-vém de camiões e tractores e motoretas abrandara, a fome começava a incomodar-me. Hora de almoço, pois... Lá do fundo, porta do corredor escancarada, chegava-me um aroma intenso a azeite escaldado. O refogado de cebola e tomate prenunciava o ritual. Antigo, talvez fruto de uma necessidade que refinou o engenho. Pão duro no fundo da tigela grande, lembrando tempos em que se amassava para toda a semana, a água vasada lentamente, pedacitos de tomate salpicando a pedra, os vapores enfeitiçando-nos as narinas, a colher de pau afogando bem as fatias no caldo. Breves momentos de repouso, as dádivas da terra congeminando uma alquímia dos sabores.

As sopas de tomate, como a açorda de alho, servem-se a gosto. Por mim, prefiro-as bem molhadinhas, o miolo a desfazer-se-me na boca, o caldo a afundar-se-me na língua, as batatas e o ovo a deslizarem goela abaixo. Por isso, sou sempre o último a encher o prato, fundo a transbordar abundantemente e ameaçando a brancura da toalha. Não tenho pressa, deixo-me seduzir por cada colherada – sim, que isto de sopas à alentejana não faz sentido de garfo e faca. Repito a dose, o estômago a protestar, eu a não fazer caso; estes sabores da planície, cá para mim, têm um feitiço qualquer, arrasam a vontade de qualquer um...

Cama, está-se mesmo a ver, a fatia de melão engolida a caminho do quarto. Deixo-me cair, farto, o ranger da cama a soar-me já distante. Uns segundos mais e eis-me a sonhar com o almoço do dia seguinte. Pelos vistos, de nada me valeram as poucas aulas de catequese em que pus os pés. E os pecados, mesmo ateu, costumam pagar-se caro. Uma reviravolta mal calculada, a cama a finar-se, um trambolhão de meia-noite, o joelho esquerdo a guinchar de dor, gelos e repousos à vista. Bem, o gelo ainda vá...

Que se lixe! Alguém faz o obséquio de me dizer a ementa de amanhã?

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Fiquem bem. Vemo-nos por aí...

13 setembro 2005

Postais de Cuba - A permanência da memória

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Sentei-me no banco, óculos postos e livro na mão. Não já a Tortuga das traquinices de garoto, férias de Verão no pino, golfadas de sangue na guelra. Pedra rosa salpicada de branco onde, por gosto e vocação, fazíamos questão de deixar impressionistas marcas de lama. Água e terra transbordando de cada canteiro, o Ti Joaquim absorto no enrolar de outra beata. Um chispe do isqueiro e ei-lo, à pressa, a mudar a mangueira enquanto nos rogava pragas de meter medo ao susto. Esses assentos levou-os o camartelo quando, num arremedo de pós-modernismo, a Paula O’Neil arrasou geometrias e afectos. Céus!, que falta me faz o mistério, o jogo de luz e sombras que, lá do alto das copas cerradas, se derramava sobre os trilhos desenhados pelas nossas bicicletas na brandura da terra entre canteiros... As árvores - essas onde, no despudor da inocência, vertíamos as águas sorvidas no bebedouro ali perto -, as árvores, dizia, ainda teimam no tango diário com o Sol. Felizmente!
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Aventuro-me nos meandros da stand-up lusa. A Zé e o Eduardo, talvez saturados do meu negrume bloguista, despejaram-me em cima “O regresso do homem que mordeu o cão” como recordação dos meus 41 anos. E eu que sim, que gostava, que lia, estava prometido! Só agora... Só agora, aqui em Cuba, neste jardim de tantas outras descobertas, me entrego a esta leitura despreocupada, condizente com a preguicite dos neurónios em férias. Embarco neste voo planado sobre a consciência; sabe bem esta evasão de mim, este alheamento de fogos, e bombas, e ventos danados, e défices, e rentrées, e “frangos”... Uma barrela da alma, por assim dizer.
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A tarde vai-se indo, mansa. Uma nesga de Sol lambe ainda os ramos mais altos das laranjeiras que me ladeiam o olhar. E também aviões rasgando fiapos laranja, despojos da canícula, o rasto dos motores lentamente diluído no azul do céu. Um adeus que passa, uma aventura que não consigo agarrar. Mais uma, apenas... O calor empapa o ar, espessa-o, mão amiga pousada nos meus ombros, a serenidade do crespúsculo alentejano a amansar-me o sangue. Dolente, leve, esquecido do corpo, pardal de galho em galho. Um eu-Jorge rabiscado com os traços da verdade, a carvão somente, toda a harmonia deste pedaço do mundo transmutada em paz de espírito.

Livro nas pernas, olhos que abraçam o infinito. Mesmo que por uns escassos setenta metros, até ao muro branco da Casa do Povo. Saboreio a raridade do momento, delicado e frágil como uma flor de dente-de-leão. A mínima aragem pode estilhaçá-lo, qualquer movimento descompassado atirá-lo para o vazio. Por isso esta minha quietude, por isso esta sangria do pensar. Arrecadá-lo numa caixinha de fósforos, eis o sonho. Para, em qualquer tempo e onde quer que esteja, quando a biologia me pregar uma das suas partidas, e o descontrolo motor me revolver as entranhas e trouxer à tona o Hyde nelas adormecido, reencontrar-me no abrir de uma gaveta. Da caixinha de fósforos no fundo na algibeira. Tão simples como isso...
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Reparo que a ferrugem começou já a comer o esqueleto do banco. Um par de anos e haverá chagas abertas. Depois, a madeira irá abrindo fendas, lascas carunchosas retornarão ao pó, tábuas rangerão nos parafusos. E o jardim, já hoje parco de vivências, definhará ainda mais. Talvez se anime um pouco nos meses de Verão, os emigrantes a regressarem, o café-esplanada lá do fundo a abrir e a fervilhar de bicas e imperiais e, queira Deus!, copos de três. Mas os bancos estarão vazios, sós, ausentes do coração dos homens. Pois ninguém neles se sentará. Nem putos de Game Boy na mão nem velhotes de camisa preta em busca de poiso para o cansaço. Nem sequer um casalinho na urgência do primeiro beijo. Talvez um pobre diabo, perdido de bêbedo, tropece nalgum e caia ferrado a dormir; mesmo assim, acho que já preferem a macieza da relva.
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Apenas a memória por aqui se quedará, aninhada em recantos de que só eu conheço o atalho. As guerras de laranjas, as fisgas aprontadas para as tâmaras, os pardais e... os lampiões, e era a festança do dia se alguém conseguia rebentar também com a lâmpada!, o bilas e os jogos de caricas que se desdobravam em zaragatas sobre zaragatas, as mãos a pingar óleo das correntes das bicicletas, o chiar dos travões envolto nessa poeira fina que nos fazia zarpar para o bebedouro, as camisolas escorrendo a frescura das águas, e que gozo abrir a torneira no máximo e esguichar para tudo o que se mexesse!, às vezes o dedo falhava-nos e era banho certo vindo lá das alturas, o que não havia meio de falhar eram as palmadas bem medidas assim que assomávamos à porta do quintal, não chegavam já as nódoas negras e os arranhões, porra!..., os piropos sem nexo às miúdas, e nem por um canudo lhes chegávamos perto, o exibicionismo descarado a coberto de troncos e arbustos, “Consigo mijar mais longe do que tu, toma!”, a Tânia entalada em almanaques do Patinhas a destrambelhar-nos o coração e outras coisas, nem 13 anos e já uns pervertidos do caraças!, e depois lá tínhamos que ir para trás dos fardos de palha do Sr. Plácido..., de qualquer forma ainda me restava espaço nas mãos para a Sophia ou para o Dumas, e até esse súbito rebate de consciência que nos fez (eu, o António Maria e o João Francisco) enterrar um passarito entre as raízes do pinheiro grande. E, claro!, as tertúlias sobre coisa nenhuma nos outros bancos, os de duas tábuas pintadas de verde-escuro, pernas para trás, braços e queixos repousados no espaldar.
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E lentamente, inexoravelmente, um manto negro ir-se-á tecendo sobre o jardim. A culpa não é dos bancos nem da Paula. Tirando o café, um mono de linhas direitas cravejado de ferro a fazer as vezes de porta e janelas, apenas o reflexo da cal a lembrar que esta foi terra de califas, a Paula até conjugou airosamente espaços abertos, recato de sombras das árvores quase centenárias, arranjos florais, línguas de relva e um espelho de água onde mergulham tamareiras e laranjeiras. O resto é nostalgia. Minha. A culpa nem tão pouco é dos jardineiros, viço e aprumo olhos adentro. Talvez seja apenas o ar dos tempos. Velhotes presos nos lares, garotos grudados às Playstations, namoricos frente a uma bica e um bolo na mais que estafada ida à pastelaria.
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Fiquem bem. Vemo-nos por aí...