Postais de Cuba - A permanência da memória
Sentei-me no banco, óculos postos e livro na mão. Não já a Tortuga das traquinices de garoto, férias de Verão no pino, golfadas de sangue na guelra. Pedra rosa salpicada de branco onde, por gosto e vocação, fazíamos questão de deixar impressionistas marcas de lama. Água e terra transbordando de cada canteiro, o Ti Joaquim absorto no enrolar de outra beata. Um chispe do isqueiro e ei-lo, à pressa, a mudar a mangueira enquanto nos rogava pragas de meter medo ao susto. Esses assentos levou-os o camartelo quando, num arremedo de pós-modernismo, a Paula O’Neil arrasou geometrias e afectos. Céus!, que falta me faz o mistério, o jogo de luz e sombras que, lá do alto das copas cerradas, se derramava sobre os trilhos desenhados pelas nossas bicicletas na brandura da terra entre canteiros... As árvores - essas onde, no despudor da inocência, vertíamos as águas sorvidas no bebedouro ali perto -, as árvores, dizia, ainda teimam no tango diário com o Sol. Felizmente!
Aventuro-me nos meandros da stand-up lusa. A Zé e o Eduardo, talvez saturados do meu negrume bloguista, despejaram-me em cima “O regresso do homem que mordeu o cão” como recordação dos meus 41 anos. E eu que sim, que gostava, que lia, estava prometido! Só agora... Só agora, aqui em Cuba, neste jardim de tantas outras descobertas, me entrego a esta leitura despreocupada, condizente com a preguicite dos neurónios em férias. Embarco neste voo planado sobre a consciência; sabe bem esta evasão de mim, este alheamento de fogos, e bombas, e ventos danados, e défices, e rentrées, e “frangos”... Uma barrela da alma, por assim dizer.
A tarde vai-se indo, mansa. Uma nesga de Sol lambe ainda os ramos mais altos das laranjeiras que me ladeiam o olhar. E também aviões rasgando fiapos laranja, despojos da canícula, o rasto dos motores lentamente diluído no azul do céu. Um adeus que passa, uma aventura que não consigo agarrar. Mais uma, apenas... O calor empapa o ar, espessa-o, mão amiga pousada nos meus ombros, a serenidade do crespúsculo alentejano a amansar-me o sangue. Dolente, leve, esquecido do corpo, pardal de galho em galho. Um eu-Jorge rabiscado com os traços da verdade, a carvão somente, toda a harmonia deste pedaço do mundo transmutada em paz de espírito.
Livro nas pernas, olhos que abraçam o infinito. Mesmo que por uns escassos setenta metros, até ao muro branco da Casa do Povo. Saboreio a raridade do momento, delicado e frágil como uma flor de dente-de-leão. A mínima aragem pode estilhaçá-lo, qualquer movimento descompassado atirá-lo para o vazio. Por isso esta minha quietude, por isso esta sangria do pensar. Arrecadá-lo numa caixinha de fósforos, eis o sonho. Para, em qualquer tempo e onde quer que esteja, quando a biologia me pregar uma das suas partidas, e o descontrolo motor me revolver as entranhas e trouxer à tona o Hyde nelas adormecido, reencontrar-me no abrir de uma gaveta. Da caixinha de fósforos no fundo na algibeira. Tão simples como isso...
Reparo que a ferrugem começou já a comer o esqueleto do banco. Um par de anos e haverá chagas abertas. Depois, a madeira irá abrindo fendas, lascas carunchosas retornarão ao pó, tábuas rangerão nos parafusos. E o jardim, já hoje parco de vivências, definhará ainda mais. Talvez se anime um pouco nos meses de Verão, os emigrantes a regressarem, o café-esplanada lá do fundo a abrir e a fervilhar de bicas e imperiais e, queira Deus!, copos de três. Mas os bancos estarão vazios, sós, ausentes do coração dos homens. Pois ninguém neles se sentará. Nem putos de Game Boy na mão nem velhotes de camisa preta em busca de poiso para o cansaço. Nem sequer um casalinho na urgência do primeiro beijo. Talvez um pobre diabo, perdido de bêbedo, tropece nalgum e caia ferrado a dormir; mesmo assim, acho que já preferem a macieza da relva.
Apenas a memória por aqui se quedará, aninhada em recantos de que só eu conheço o atalho. As guerras de laranjas, as fisgas aprontadas para as tâmaras, os pardais e... os lampiões, e era a festança do dia se alguém conseguia rebentar também com a lâmpada!, o bilas e os jogos de caricas que se desdobravam em zaragatas sobre zaragatas, as mãos a pingar óleo das correntes das bicicletas, o chiar dos travões envolto nessa poeira fina que nos fazia zarpar para o bebedouro, as camisolas escorrendo a frescura das águas, e que gozo abrir a torneira no máximo e esguichar para tudo o que se mexesse!, às vezes o dedo falhava-nos e era banho certo vindo lá das alturas, o que não havia meio de falhar eram as palmadas bem medidas assim que assomávamos à porta do quintal, não chegavam já as nódoas negras e os arranhões, porra!..., os piropos sem nexo às miúdas, e nem por um canudo lhes chegávamos perto, o exibicionismo descarado a coberto de troncos e arbustos, “Consigo mijar mais longe do que tu, toma!”, a Tânia entalada em almanaques do Patinhas a destrambelhar-nos o coração e outras coisas, nem 13 anos e já uns pervertidos do caraças!, e depois lá tínhamos que ir para trás dos fardos de palha do Sr. Plácido..., de qualquer forma ainda me restava espaço nas mãos para a Sophia ou para o Dumas, e até esse súbito rebate de consciência que nos fez (eu, o António Maria e o João Francisco) enterrar um passarito entre as raízes do pinheiro grande. E, claro!, as tertúlias sobre coisa nenhuma nos outros bancos, os de duas tábuas pintadas de verde-escuro, pernas para trás, braços e queixos repousados no espaldar.
E lentamente, inexoravelmente, um manto negro ir-se-á tecendo sobre o jardim. A culpa não é dos bancos nem da Paula. Tirando o café, um mono de linhas direitas cravejado de ferro a fazer as vezes de porta e janelas, apenas o reflexo da cal a lembrar que esta foi terra de califas, a Paula até conjugou airosamente espaços abertos, recato de sombras das árvores quase centenárias, arranjos florais, línguas de relva e um espelho de água onde mergulham tamareiras e laranjeiras. O resto é nostalgia. Minha. A culpa nem tão pouco é dos jardineiros, viço e aprumo olhos adentro. Talvez seja apenas o ar dos tempos. Velhotes presos nos lares, garotos grudados às Playstations, namoricos frente a uma bica e um bolo na mais que estafada ida à pastelaria.
Fiquem bem. Vemo-nos por aí...
1 Comments:
Boa Jogi...gosstei!
Vê-mo-nos por aí
pedro f.
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