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Novas aventuras em mim (menor)

Aventuras em mim (menor)? Escrever é aventura, é incógnita. Viagem de dedos por sonhos, desejos, fantasias, pequenas e grandes coisas sobre mim e o mundo à minha volta. Desejo de partilha, também. De sentimentos, emoções, momentos, vivências, silêncios até. Quanto ao “menor”, é uma brincadeira, um pequeno trocadilho com a nota musical Mi menor. É, também, uma medida da minha humildade, da consciência brutal das minhas limitações como escriba.

12 julho 2005

Uma casa na pradaria...

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Tijolos à vista, janelas toscas, desamparada entre céu e terra. Casa modesta, a da família Matos. Que desceu lá das serranias em busca de pão no amanho da terra. Um contrato de arrendamento não renovado e os Matos à míngua de tecto. Uma mulher, um homem, cinco crianças.

Todavia, em João Antão, aldeia perdida nas faldas da Serra da Estrela, a solidariedade ainda mora no coração dos homens. Uns juntaram dinheiro para o terreno, comprado a um emigrante. Outros deram braços, tempo, tijolos, cimento, madeira e... amor. Mourejaram muitos fins-de-semana, suaram, alquebraram-se. Não desistiram. E os Matos ganharam um lar.

Entremeado com tanto voluntarismo e boa-fé, um espinho. Fatal. Um dia, passaram por ali os senhores fiscais da Câmara da Guarda. Que não senhor, que não podia ser. Que compreendiam o esforço, que sentiam muito o desespero da família Matos; mas que, tenham lá paciência!, a casota está escarrapachada em terreno da Reserva Ecológica Nacional, e etc. e tal, e a lei é igual para todos. Pobres, ricos e remediados. Portanto, facham lá favor de respeitar a lei e deixar as plantinhas crescerem à vontade, se não se importam a casa tem que ir abaixo nos próximos trinta dias, até que é Verão e sabe bem dormir ao relento, olhos nas estrelas, sabe-se lá!, até pode ser que dêem sorte no Euromilhões ou coisa assim, lá na Guarda é impossível por causa das luzes da cidade, e nesse aspecto vocês, os Matos, são uns felizardos do caneco, senão tem que vir cá o bulldozer da Câmara arrasar isto tudo à mesma, mas só com ordem do Sr. Dr. Juíz, portanto poupem-nos lá esse incómodo, para esta merda não ir a tribunal, isso era mesmo o cabo dos trabalhos e a gente só quer é estar sossegada e beber uns copitos e aceitar prebendas de ricaços, olhem, não sabem por acaso se há para aí a casa de algum ministro, pronto!, não nos importamos, pode ser só Secretário de Estado, a gente fecha os olhos, sabem como é, gente fina é outra coisa, a lei prevê excepções, excepto se não se tiver onde cair morto.

A história é quase incrível pela sua desumanidade, pelo seu formalismo bacoco e surreal. Estamos de acordo: é da própria natureza de uma lei existir para ser cumprida. No caso, para defender património biológico e ambiental cujo valor e especificidade tenham sido avalizados por especialistas. O objectivo do legislador terá sido o de evitar a predação de zonas ecologicamente sensíveis por especuladores imobiliários e ganâncias avulsas. Todavia, quando se puxa pela memória, um sorriso - que, depois, é grito de fúria! - sobe-nos aos lábios: na maior parte das vezes, são as Câmaras as primeiras a ceder à lei do betão, desafectando terrenos da REN e da RAN para projectos de bradar aos céus. A ansiada urbanização do Meco é apenas um exemplo. E o abate de sobreiros em Santo Estevão, outro. E os campos de golfe em regiões de seca, e os condomínios fechados em cima das dunas, e a Quinta do Lago a resvalar para o mar, e... Bolas, a memória escolhe os piores momentos para me falhar.

A conservação da Natureza, objectivo nobre, não se pode fazer contra as pessoas mas com as pessoas, com o seu envolvimento, com o seu empenhado esforço. Explique-se aos Matos que a sua casa está em zona sensível, quais os cuidados a ter, que código de boas condutas seguir. Ainda por cima, com crianças em idade escolar: ouro sobre azul no caminho da esperança de uma geração que corte, de vez e para sempre, com o nosso crónico atraso em matéria de civismo e cidadania.

E se os Matos tiverem mesmo que demandar outras paragens - e supondo que o Estado seja pessoa de bem e que o incumprimento da lei foi involuntário -, seria da mais elementar justiça que fosse o erário público a abrir os cordões à bolsa na construção da nova casa desta família. Porque a vocação do Estado não pode ser apenas a de arrecadar cobres de impostos e multas. Porque o Estado não pode destruir um lar por dá cá aquela palha e, serenamente, assobiar para o ar. Porque ter uma habitação condigna é um dos direitos fundamentais da pessoa humana, sem o qual fica impossibilitada de se realizar na sua plenitude e dar o seu contributo à comunidade. Por isso, a justa aplicação da lei é aquela que se funda na simbiose do Direito com o bater dos nossos corações.

Ah!, a propósito: porque diabo é que, nestes casos, a Quercus e primas associadas não tugem nem mugem?

Fiquem bem. Vemo-nos por aí...