Da natureza das imagens
Poucos dias após “publicar” o texto sobre Cavaco Silva e as eleições presidenciais (“Credo, que cara!”, de 20 de Janeiro), encalhou-me nas mãos um livro do filósofo checo naturalizado brasileiro Villém Flusser. “Ensaio sobre a fotografia: Para uma filosofia da imagem” debruça-se, como o texto acima referido, sobre a natureza e significado das imagens. Comecei a lê-lo, com a natural curiosidade de quem procura novos argumentos para uma tese. Dois capítulos mais tarde, estava pronto a atirar o livro pela janela! O filósofo, ensimesmado, dedica-se a fazer “bola de carne” com as palavras e, claro!, o discurso torna-se ilegível. No entanto, o pouco que li suscitou-me algumas reflexões, que aqui exponho.
Para Flusser, uma das principais características do Homem é ser um produtor de imagens. Dos pigmentos argilosos do Paleolítico aos pixels da era digital, desde a imagem-símbolo à imagem-cena, o Homem tem usado as imagens para se apropriar do mundo que o rodeia, numa sempre renovada tentativa de compreender essa realidade que lhe é exterior.
Desde logo, porque as imagens são simplificações da realidade, que assim se torna mais acessível. Basicamente, por exemplo, um carro pode ser representado por dois círculos, um rectângulo e um trapézio. Quer isto dizer que, através de um processo abstracto (imaginação), se reduzem as quatro dimensões do mundo exterior às duas dimensões de um plano que, posteriormente, o nosso cérebro reconverte em objectos tridimensionais através do olhar. Os nossos olhos, de um golpe de vista ou vagueando demoradamente pela superfície da imagem (scanning) ao sabor da sua estrutura e dos impulsos do observador, apreendem-lhe o significado – tanto mais profundo quanto mais demorada a observação. Ou seja, o acto de ver restabelece as relações espácio-temporais abstraídas e lê a possível “mensagem” que o autor pretende transmitir. A interpretação de uma imagem é, pois, um compromisso entre dois olhares: o do emissor e o do receptor. Todavia, o tempo assim (re)criado não é um tempo linear, já que os nossos olhos tendem a regressar a pontos preferenciais, a andar em círculos, desfazendo o nexo causal entre os elementos da imagem, o efeito podendo preceder a causa. É um novo tempo: tempo de magia, na medida em que altera a ordem natural dos acontecimentos
Esta propriedade das imagens, o “carácter mágico” que Flusser lhes atribuí, é essencial para a compreensão das mensagens implícitas. “As imagens são códigos que traduzem eventos em si-tuações, processos em cenas” Uma imagem, portanto, é uma representação, uma mediação entre o Homem e o mundo, não é o mundo em si. O nosso papel é decifrá-las, atribuir-lhes um significado, encontrar-lhes um lugar no nosso esquema de compreensão do mundo. A par da leitura, é este o processo pelo qual aprendemos e, com isso, aumentamos as nossas hipóteses de sobrevivência. Com efeito, aprender é extrair informação útil de um conjunto de dados. O problema começa quando, numa sociedade saturada de media audiovisuais, passamos a viver em função das imagens - e para as imagens. Não sabemos interpretá-las ou, pura e simplesmente, desistimos dessa tarefa. Aceitamos o mundo como um conjunto de cenas, isto é, como sequências de imagens. Elevamo-las à categoria de deuses, de ídolos, caindo no que Flusser chama a idolatria das imagens. Tornamo-nos seus escravos. Neste caso, nada aprendemos e, por maioria de razão, a imagem torna-se inútil. Vivemos, pois, em sociedades pós-históricas, marcadas pela hegemonia das imagens e pelo colapso dos textos.
Um exemplo deste estado de coisas é a maneira como as notícias são editadas: já não dispensam as imagens, mesmo que estas nada tenham a ver com o assunto ou nenhuma informação acrescentem ao texto lido. Mais significativo ainda é o facto de a presença de uma câmara de televisão poder induzir alterações comportamentais. Está provado, por exemplo, que as claques de futebol se tornam mais indisciplinadas e violentas quando o jogo é transmitido pela televisão. No limite, assiste-se a uma completa dissonância com a realidade: as pessoas existem em função das imagens, vivem para elas (caso do “Big Brother” e programas similares) ou aspiram a tornarem-se, elas próprias, imagem (caso de um miúdo que se atirou da janela do seu quarto depois de ver o filme “Super-homem”). Vai uma aposta em como, algures, há-de haver uma criança convencida de que pode caminhar sobre a água depois de ver o último anúncio da Optimus?
Mas nem sempre foi assim. A História nasceu, precisamente, de uma “rebelião” contra as imagens. Ao carácter mágico das pinturas rupestres, feitiço contra os animais que caçavam, os nossos antepassados contrapuseram a racionalidade dos números. Há cerca de 5000 anos, na Suméria, sentiram necessidade de registar a produção agrícola e o tributo devido aos reis. Os caracteres cuneiformes foram, deste modo, uma etapa importante da evolução humana: após codificar o mundo em imagens, o Homem dedicou-se a codificar as próprias imagens – qualquer imagem. Ao fazê-lo, ao abstrair mais uma dimensão do mundo, transformou o tempo circular e “caótico” da imagem no tempo linear e ordenado do texto, os elementos imagéticos agora transcodificados em símbolos fonéticos que pretendiam representar a voz humana. A História (e as histórias…) podia agora começar, porque a consciência inata do “antes e depois” transformava-se na percepção consciente da passagem do tempo - consciência histórica, claro! Um tempo que podia agora ser transformado em traços de tinta, fixado em suporte mais duradouro que a memória e transmitido fielmente às gerações seguintes. É por isso que, hoje, temos o privilégio de conhecer reis e rainhas, batalhas, monumentos perdidos, grandezas e misérias dos povos. É por isso, também, que somos herdeiros da sabedoria de milhares de homens e mulheres que viveram antes de nós, de Aristóteles a Einstein. E é por isso, ainda, que podemos apreciar os frutos da prodigiosa imaginação humana. Ou seja, dessa faculdade de compor em imagens os mais genuínos sentimentos e emoções e, qual arte mágica, reduzi-los a pequenas manchas de tinta num papel para que, noutro tempo e noutro lugar, outro que não nós reconstrua as imagens dentro de si e se deixe emocionar por elas. Da “Odisseia”, de Homero, a “Memória das minhas putas tristes”, o último Gabriel Garcia Marquez, que magnífico fresco da condição humana!
Eis o que Flusser, cego e ensimesmado no seu próprio pensamento, não conseguiu perceber! “A imaginação torna-se alucinação e o homem passa a ser incapaz de decifrar imagens, de reconstituir as dimensões abstraídas. (…) Actualmente, o maior poder conceptual reside em certas imagens e o maior poder imagético em certos textos da ciência exacta”. Isto estaria certo se Flusser se referisse exclusivamente aos meios audiovisuais. E, no entanto, é ver um filme como “Noite escura”, de João Canijo, com toda a sua complexidade estrutural e semântica, para temer generalizações deste calibre. Mas meter no mesmo saco a literatura, toda a literatura? É verdade que alguns autores contemporâneos acabam por lhe dar razão. Livros como “O código Da Vinci” (de Dan Brown) ou “Sei lá” (de Margarida Rebelo Pinto), resultam de uma mera transposição de imagens mentais para caracteres tipográficos, sem conceito, sem ideias, sem norte, sem o tempero do sofrimento íntimo do Homem – que saudades do Tolstoi de “Guerra e paz” ou do Dickens de “Oliver Twist”! Mas aqueles livros não passam de excrecências literárias, lixo para extorquir dinheiro a papalvos. Flusser poderá ter razão nestes casos e noutros semelhantes. Contudo, enfiar o inteiro Mundo dentro de tão estreitos limites, eis o que não pode deixar de ser visto como um abuso… filosófico!
Fiquem bem. Vemo-nos por aí...
Para Flusser, uma das principais características do Homem é ser um produtor de imagens. Dos pigmentos argilosos do Paleolítico aos pixels da era digital, desde a imagem-símbolo à imagem-cena, o Homem tem usado as imagens para se apropriar do mundo que o rodeia, numa sempre renovada tentativa de compreender essa realidade que lhe é exterior.
Desde logo, porque as imagens são simplificações da realidade, que assim se torna mais acessível. Basicamente, por exemplo, um carro pode ser representado por dois círculos, um rectângulo e um trapézio. Quer isto dizer que, através de um processo abstracto (imaginação), se reduzem as quatro dimensões do mundo exterior às duas dimensões de um plano que, posteriormente, o nosso cérebro reconverte em objectos tridimensionais através do olhar. Os nossos olhos, de um golpe de vista ou vagueando demoradamente pela superfície da imagem (scanning) ao sabor da sua estrutura e dos impulsos do observador, apreendem-lhe o significado – tanto mais profundo quanto mais demorada a observação. Ou seja, o acto de ver restabelece as relações espácio-temporais abstraídas e lê a possível “mensagem” que o autor pretende transmitir. A interpretação de uma imagem é, pois, um compromisso entre dois olhares: o do emissor e o do receptor. Todavia, o tempo assim (re)criado não é um tempo linear, já que os nossos olhos tendem a regressar a pontos preferenciais, a andar em círculos, desfazendo o nexo causal entre os elementos da imagem, o efeito podendo preceder a causa. É um novo tempo: tempo de magia, na medida em que altera a ordem natural dos acontecimentos
Esta propriedade das imagens, o “carácter mágico” que Flusser lhes atribuí, é essencial para a compreensão das mensagens implícitas. “As imagens são códigos que traduzem eventos em si-tuações, processos em cenas” Uma imagem, portanto, é uma representação, uma mediação entre o Homem e o mundo, não é o mundo em si. O nosso papel é decifrá-las, atribuir-lhes um significado, encontrar-lhes um lugar no nosso esquema de compreensão do mundo. A par da leitura, é este o processo pelo qual aprendemos e, com isso, aumentamos as nossas hipóteses de sobrevivência. Com efeito, aprender é extrair informação útil de um conjunto de dados. O problema começa quando, numa sociedade saturada de media audiovisuais, passamos a viver em função das imagens - e para as imagens. Não sabemos interpretá-las ou, pura e simplesmente, desistimos dessa tarefa. Aceitamos o mundo como um conjunto de cenas, isto é, como sequências de imagens. Elevamo-las à categoria de deuses, de ídolos, caindo no que Flusser chama a idolatria das imagens. Tornamo-nos seus escravos. Neste caso, nada aprendemos e, por maioria de razão, a imagem torna-se inútil. Vivemos, pois, em sociedades pós-históricas, marcadas pela hegemonia das imagens e pelo colapso dos textos.
Um exemplo deste estado de coisas é a maneira como as notícias são editadas: já não dispensam as imagens, mesmo que estas nada tenham a ver com o assunto ou nenhuma informação acrescentem ao texto lido. Mais significativo ainda é o facto de a presença de uma câmara de televisão poder induzir alterações comportamentais. Está provado, por exemplo, que as claques de futebol se tornam mais indisciplinadas e violentas quando o jogo é transmitido pela televisão. No limite, assiste-se a uma completa dissonância com a realidade: as pessoas existem em função das imagens, vivem para elas (caso do “Big Brother” e programas similares) ou aspiram a tornarem-se, elas próprias, imagem (caso de um miúdo que se atirou da janela do seu quarto depois de ver o filme “Super-homem”). Vai uma aposta em como, algures, há-de haver uma criança convencida de que pode caminhar sobre a água depois de ver o último anúncio da Optimus?
Mas nem sempre foi assim. A História nasceu, precisamente, de uma “rebelião” contra as imagens. Ao carácter mágico das pinturas rupestres, feitiço contra os animais que caçavam, os nossos antepassados contrapuseram a racionalidade dos números. Há cerca de 5000 anos, na Suméria, sentiram necessidade de registar a produção agrícola e o tributo devido aos reis. Os caracteres cuneiformes foram, deste modo, uma etapa importante da evolução humana: após codificar o mundo em imagens, o Homem dedicou-se a codificar as próprias imagens – qualquer imagem. Ao fazê-lo, ao abstrair mais uma dimensão do mundo, transformou o tempo circular e “caótico” da imagem no tempo linear e ordenado do texto, os elementos imagéticos agora transcodificados em símbolos fonéticos que pretendiam representar a voz humana. A História (e as histórias…) podia agora começar, porque a consciência inata do “antes e depois” transformava-se na percepção consciente da passagem do tempo - consciência histórica, claro! Um tempo que podia agora ser transformado em traços de tinta, fixado em suporte mais duradouro que a memória e transmitido fielmente às gerações seguintes. É por isso que, hoje, temos o privilégio de conhecer reis e rainhas, batalhas, monumentos perdidos, grandezas e misérias dos povos. É por isso, também, que somos herdeiros da sabedoria de milhares de homens e mulheres que viveram antes de nós, de Aristóteles a Einstein. E é por isso, ainda, que podemos apreciar os frutos da prodigiosa imaginação humana. Ou seja, dessa faculdade de compor em imagens os mais genuínos sentimentos e emoções e, qual arte mágica, reduzi-los a pequenas manchas de tinta num papel para que, noutro tempo e noutro lugar, outro que não nós reconstrua as imagens dentro de si e se deixe emocionar por elas. Da “Odisseia”, de Homero, a “Memória das minhas putas tristes”, o último Gabriel Garcia Marquez, que magnífico fresco da condição humana!
Eis o que Flusser, cego e ensimesmado no seu próprio pensamento, não conseguiu perceber! “A imaginação torna-se alucinação e o homem passa a ser incapaz de decifrar imagens, de reconstituir as dimensões abstraídas. (…) Actualmente, o maior poder conceptual reside em certas imagens e o maior poder imagético em certos textos da ciência exacta”. Isto estaria certo se Flusser se referisse exclusivamente aos meios audiovisuais. E, no entanto, é ver um filme como “Noite escura”, de João Canijo, com toda a sua complexidade estrutural e semântica, para temer generalizações deste calibre. Mas meter no mesmo saco a literatura, toda a literatura? É verdade que alguns autores contemporâneos acabam por lhe dar razão. Livros como “O código Da Vinci” (de Dan Brown) ou “Sei lá” (de Margarida Rebelo Pinto), resultam de uma mera transposição de imagens mentais para caracteres tipográficos, sem conceito, sem ideias, sem norte, sem o tempero do sofrimento íntimo do Homem – que saudades do Tolstoi de “Guerra e paz” ou do Dickens de “Oliver Twist”! Mas aqueles livros não passam de excrecências literárias, lixo para extorquir dinheiro a papalvos. Flusser poderá ter razão nestes casos e noutros semelhantes. Contudo, enfiar o inteiro Mundo dentro de tão estreitos limites, eis o que não pode deixar de ser visto como um abuso… filosófico!
Fiquem bem. Vemo-nos por aí...
4 Comments:
CUCU, está ai alguem ??
beijos
e essas outras historias q n t escapas d m acabar de contar :)
Texto brilhante!BRAVO!
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