Aos nossos amores...
A minha irmã é amiga da Inês, que é amiga do João, que tem um blog. E estamos apresentados!
Ora acontece que, um destes dias, o João escreveu um pequeno texto sobre amor e paixão. Eu comentei e acrescentei uns poemas da minha lavra que se adequavam ao espírito do texto. Mal sabia eu que há um limite de caracteres para os devaneios comentaristas de cada um. Lixei-me! Um poema e um terço de outro foi o que sobrou. Deste modo, por respeito aos leitores do João – e não andará por aqui ponta de narcisismo?... -, reproduzo o meu comentário e os poemas sem cortes.
“De facto, João, o amor é prado fértil para o poeta, para o ser sedento de amor, que em nós encontra abrigo. Até eu – que, para a escrita, conto tanto como um zero à esquerda –, nos tempos de inocência e de (des)ilusão em fazer das palavras correia de transmissão dos tumultos da alma, dizia que até eu andei metido em poemas de amor, ou românticos, ou lá como se queira chamar-lhes. Aqui ficam 2 ou 3 exemplos. Vá lá, não batam muito no ceguinho!...”
AMAR
Um homem e uma mulher...
Corpos e espíritos
Que se tocam,
Que se fundem...
A entrega total...
Amar às escuras
No coração da noite...
Cuba, 29/8/89
Sonho de uma manhã de Verão
Caminho...
O areal deserto faz-se a meus pés,
espraia-se até ao horizonte,
lá ao longe, quase perdido de vista...
altaneiras vagas namorando o promontório,
golpes de vento aspergindo-as em mil beijos,
sequiosas plantas entranhando salpicos de vida...
grãos roliços soprados ao céu,
sementeira de estrelas...
Aqui, na praia,
o oceano vem adormecer
sob os meus passos...
marulhos lânguidos
e sussurantes de um aroma a sal e coisas vivas,
adocicado
e logo ternamente agreste como o sangue de Baco...
delírio!, eis que me habitam
reflexos de uma orquestra de sereias
valsando ao sabor
do respirar de Neptuno.
Uma gaivota risca o céu,
levada pelas carícias da brisa que sopra ligeira...
pas de deux, o Sol
bordejando Avalon (1)
ao encontro do seu sono de guerreiro!
Caminho...
É um fim de tarde sereno e cálido...
fugazes, frágeis migalhas de tempo,
sinto-me Alice mergulhando pela toca do coelho!
As mãos perderam-se-me nos bolsos dos calções
e os meus olhos,
distraídos, langorosos,
divertem-se a seguir o voo
dos punhados de areia que ceifo a cada passada.
É um fim de tarde sereno e cálido...
goles de tempo que fluem
na esperança
sempre adiada mas nunca perdida
de tropeçar num qualquer pedaço do Graal!... (2)
Caminho...
Dou por mim
a mirar o meu rasto,
esses meus arranhões no tempo,
essas feridas na areia
que as águas vão sarando,
como se o próprio passado
ali estivesse a ser engolido,
e remendado...
Dou por mim na contemplação
do tempo
que tenho ainda para carpir,
da areia
que tenho ainda para calcorrear,
e confesso aos meus botões
aquela sensação divertida
de lá em cima
alguém de mim gostar!
Um veleiro passa ao largo...
sento-me abraçado aos joelhos,
dedos enterrados na veludez da areia,
saboreando as recordações
daquele verão distante...
um bando traquinas,
jangada tosca lançada às ondas,
espada de plástico na mão,
venda no olho,
o mar pela frente,
uma princesa acenando da praia,
peitos estremecendo de coragem,
um imperturbável comandante à proa,
os remos batendo na água,
e lá partíramos nós à conquista
do reino do génio da lâmpada...
os adultos, coitados!,
apenas se permitiam ver
um rochedo inerte
a uma dezena de metros da praia.
Excitante livro florira
da memória para a minha pena;
os miúdos, pelo menos, gostavam...
Sorrio um sorriso diafáno
e tranquilo
que se esvanece no ar.
Ali fiquei,
com o veleiro, o Sol, a gaivota e a miragem de Avalon,
e os fogos celestes ateando-se
na vigília por Artur... (3)
"Apanhei-te!",
e só tive tempo de ver
uma sombra abater-se sobre mim.
Mergulhámos praia abaixo,
gritos, gargalhadas, areia na boca,
entrámos mar dentro,
um caranguejo enterrou-se na vasa,
o nosso olhar encontrou as estrelas,
brincámos...
"Apanhei-te, bandido, apanhei-te!",
e aquela voz límpida troava nos ares,
o Alexandre aos saltos sobre mim,
um dedo ameaçador apontado à minha testa.
"Rendes-te?"
"Nem penses, Alex!"
e libertei-me,
e corremos,
e chapinhámos na água,
e as balas de areia que fizemos!,
e fugimos um do outro,
e mais gritos, e gargalhadas, e ameaças,
e andámos às voltas, e aos ziguezagues,
e aos ésses, e às curvas,
e mais balas de areia,
e mais voltas, e ziguezagues, e ésses, e curvas,
e tropeçámos,
e caímos arquejantes lado a lado...
O piratinha aproximou-se...
apoiou a cabeça no meu peito,
beijou-me,
as palavras eivadas de um sorrir matreiro:
"Papá, a mamã mandou-me chamar-te para jantarmos"
Fiz-lhe cócegas na barriga,
olhei por cima do ombro
na direcção das dunas.
No alpendre,
encostada a uma trave,
ela...
cabelos soltos,
candura esguia no rosto,
gotas de champanhe gelado escorrendo dos lábios,
Steinbeck na mão,
o roupão aberto esvoaçando,
os primeiros acordes daquela música...
Abro os olhos.
Fecho-os, atordoado.
É o maldito sol
que entra a jorros pelo buraco que outrora foi uma janela.
É a brisa escaldante
que me dardeja a carne nua.
É a língua pastosa e gretada
daquele whisky reles que teimo em beber.
É aquela dor na nuca
que um dia veio e jamais me largou.
É o odor pestilento
de mijo de cão enovelado no meu suor.
É a ladainha roufenha
do tráfego na rua para lá do pátio...
Abro os olhos,
de novo e lentamente.
Tento mexer-me,
o catre geme
...eu também.
Às apalpadelas,
dou com a garrafa tombada no chão,
cuspo a rolha,
bebo um trago,
engasgo-me...
a sorte é que já não devo durar muito.
Mais um trago.
Acho montes de piada...
à lâmpada suspensa do tecto,
ao estuque a cair,
ao cancro esverdeado que vai comendo as paredes...
a máquina lá está a um canto,
abandonada há não sei que tempos,
pelos vistos há bastante,
a folha já esmaeceu...
ao lado a carta do meu editor,
boa pessoa, claro!,
por ele tudo bem,
podíamos esperar que o inferno gelasse,
o problema são os miúdos,
(os dele, claro!)
dá-lhes para crescer cada dia que passa...
Merda, que se lixe...
Pois, que se lixe!
Deixo-me ficar...
as baratas e o Litlle Mickey
farejam pelos cantos do quarto
na pista de uma côdea de pão...
muito finos,
as baratas
e o Litlle Mickey
- não tocam em whisky reles.
Outro trago,
e procuro os cigarros,
lembro-me de os espalhar pela cama
ontem à noite...
o lençol húmido,
o toque peganhento de uma liga...
fodas, a cabra mamou-me metade do whisky
e ainda me desapareceu com a porra dos cigarros...
nada a fazer,
a vida é assim...
o álcool dá-me para fazer filosofia barata,
é uma espécie de defesa,
um refúgio,
talvez uma fuga,
talvez...
talvez como aquele postal ilustrado da baía de Tóquio,
que guardo debaixo do colchão...
manhãs esquecidas a revirá-lo nas mãos,
à espera de um olhar que lá não mora,
à escuta de palavras que não podem ser ditas,
em demanda de sentimentos há muito perdidos...
o sebo comeu quase todas as palavras,
a um canto ainda resta
"Beijos. Sílvia, Pedro e Ale..."
Fico a olhar...
entorpecido,
cheio de pena de mim próprio,
amor e ódio,
lágrimas e gargalhadas histéricas
digladiando-se,
mutuamente se fertilizando,
um dilema a que o fundo da garrafa põe cobro.
Atiro-a pela janela...
Talvez hoje consiga escrevinhar qualquer coisa de jeito.
Queluz, 16-5-90
6-6-90
1 - Na mitologia céltica, Avalon era uma ilha para lá do horizonte, porto de abrigo das barcas que transportavam as almas dos cavaleiros mortos.
2 - O Santo Graal, na mitologia céltico-cristã, era a taça por onde Jesus bebeu o vinho da última ceia; diz-se que aquele que dele beber atingirá a felicidade e paz absolutas.
3 - O rei Artur, símbolo máximo da mitologia céltica.
Dezassete Primaveras
Uma menina
De sandálias
Vestidinho
Olhar que brota da alma
Sorriso meigo
E voz doce de mel.
Uma menina
Que tantas
E tantas vezes
Sentei ao colo
E por entre histórias e jogos
Percorremos em imaginação
Aquela estrada de tijoleira amarela...
Nas solarengas tardes de verão
Que me temperaram o crescer...
Ia na rua
As brumas da memória rasgaram-se
Uma singela orquídea
Chamou pelo meu nome.
As suas pétalas
Não se abriram para mim!
As suas pétalas
Não se abrem para mim!...
Cuba, 5/5/90
Penso na Tua existência
Procuro-me nela.
Tapo os olhos
Só assim te vejo.
Pico um dedo
Não sinto
Só te sinto.
Corres à procura de cigarros.
Fumaremos
Fumamos?
Fumámos.
Vieste!
Não
Não vieste.
Quando foste
No teu andar desengonçado
E evitaste à justa
A caca do cão
Eras um sonâmbulo
Um morto e um vivo
Uma alma penada quiçá
Com a vaga ideia
De um maço de SG Ventil
Para comprar.
Eu bem vi
Deixaste-te no quiosque
Ao escorrer das moedas.
Quando vieste
SG Ventil nas mãos felizes
Eras a criança
Dentro de ti
Adormecida.
Toma!
O SG Ventil e um beijo.
Caracóis ao vento
Redescobriste-te
Criança traquinas
Tomando por baloiço
Uma pernada da hera
E um banco de jardim.
Onde terá ele ficado?
O SG Ventil!
O Sol na ponta do cigarro
A dor do fogo
Fugiste ao fumámos
Fumei.
Nem o fumo te tocou
Permanecias criança de baloiços
Num jardim de bancos.
Mas não te contentaste.
Na tua traquinice voaste
De galho em galho
De banco em banco
De adeus em adeus...
Nem o fumo ousava tocar-te!
Rasgado sorriso de menino
Os teus baloiços eram
Agora
As estrelas!
Cândida Côxo e Jorge Vargas
Principe Real, Lisboa, 17/5/91
Olá, lembrei-me de ti!
Que parvoíce, que tremendo disparate
Na pequenez do meu verbo...
Porque, mais do que simples recordação
Eu sinto-te, viva e carnal
Eu amo-te, poetisa e mulher
Na corrente do meu sangue
Na vibração da minha carne
Na explosão de um orgasmo...
E desejo-te
Oh!, desejo-te loucamente...
Furiosamente
Esventrar o teu corpo
Fundir-me, aniquilar-me nele
Pela calada da noite!
E depois
Serenos, tranquilos
A fome um do outro amainada
Os corpos embriagados comungando em silêncio
Sairmos os dois para a floresta
As mãos dadas sob as luvas quentes
O bafo morno da nossa respiração desenhando elfos e duendes no ar
Um vento gelado, miudinho, perpassando pelas folhas dos abetos
O eco surdo dos nossos passos sobre a neve perdendo-se ao longe
Um veado entrevendo-se na bruma
- Que bom se fossem os portões de Avalon! -
Um beijo e amo-te
O teu nome e o meu
Cândida e Jorge
Devolvidos num murmúrio
Seguimos caminho,
Talvez acenemos a alguma rena no céu...
Um dia de Natal feliz
Na certeza de um poema na algibeira!
Queluz, 17-12-93
Ora acontece que, um destes dias, o João escreveu um pequeno texto sobre amor e paixão. Eu comentei e acrescentei uns poemas da minha lavra que se adequavam ao espírito do texto. Mal sabia eu que há um limite de caracteres para os devaneios comentaristas de cada um. Lixei-me! Um poema e um terço de outro foi o que sobrou. Deste modo, por respeito aos leitores do João – e não andará por aqui ponta de narcisismo?... -, reproduzo o meu comentário e os poemas sem cortes.
“De facto, João, o amor é prado fértil para o poeta, para o ser sedento de amor, que em nós encontra abrigo. Até eu – que, para a escrita, conto tanto como um zero à esquerda –, nos tempos de inocência e de (des)ilusão em fazer das palavras correia de transmissão dos tumultos da alma, dizia que até eu andei metido em poemas de amor, ou românticos, ou lá como se queira chamar-lhes. Aqui ficam 2 ou 3 exemplos. Vá lá, não batam muito no ceguinho!...”
AMAR
Um homem e uma mulher...
Corpos e espíritos
Que se tocam,
Que se fundem...
A entrega total...
Amar às escuras
No coração da noite...
Cuba, 29/8/89
Sonho de uma manhã de Verão
Caminho...
O areal deserto faz-se a meus pés,
espraia-se até ao horizonte,
lá ao longe, quase perdido de vista...
altaneiras vagas namorando o promontório,
golpes de vento aspergindo-as em mil beijos,
sequiosas plantas entranhando salpicos de vida...
grãos roliços soprados ao céu,
sementeira de estrelas...
Aqui, na praia,
o oceano vem adormecer
sob os meus passos...
marulhos lânguidos
e sussurantes de um aroma a sal e coisas vivas,
adocicado
e logo ternamente agreste como o sangue de Baco...
delírio!, eis que me habitam
reflexos de uma orquestra de sereias
valsando ao sabor
do respirar de Neptuno.
Uma gaivota risca o céu,
levada pelas carícias da brisa que sopra ligeira...
pas de deux, o Sol
bordejando Avalon (1)
ao encontro do seu sono de guerreiro!
Caminho...
É um fim de tarde sereno e cálido...
fugazes, frágeis migalhas de tempo,
sinto-me Alice mergulhando pela toca do coelho!
As mãos perderam-se-me nos bolsos dos calções
e os meus olhos,
distraídos, langorosos,
divertem-se a seguir o voo
dos punhados de areia que ceifo a cada passada.
É um fim de tarde sereno e cálido...
goles de tempo que fluem
na esperança
sempre adiada mas nunca perdida
de tropeçar num qualquer pedaço do Graal!... (2)
Caminho...
Dou por mim
a mirar o meu rasto,
esses meus arranhões no tempo,
essas feridas na areia
que as águas vão sarando,
como se o próprio passado
ali estivesse a ser engolido,
e remendado...
Dou por mim na contemplação
do tempo
que tenho ainda para carpir,
da areia
que tenho ainda para calcorrear,
e confesso aos meus botões
aquela sensação divertida
de lá em cima
alguém de mim gostar!
Um veleiro passa ao largo...
sento-me abraçado aos joelhos,
dedos enterrados na veludez da areia,
saboreando as recordações
daquele verão distante...
um bando traquinas,
jangada tosca lançada às ondas,
espada de plástico na mão,
venda no olho,
o mar pela frente,
uma princesa acenando da praia,
peitos estremecendo de coragem,
um imperturbável comandante à proa,
os remos batendo na água,
e lá partíramos nós à conquista
do reino do génio da lâmpada...
os adultos, coitados!,
apenas se permitiam ver
um rochedo inerte
a uma dezena de metros da praia.
Excitante livro florira
da memória para a minha pena;
os miúdos, pelo menos, gostavam...
Sorrio um sorriso diafáno
e tranquilo
que se esvanece no ar.
Ali fiquei,
com o veleiro, o Sol, a gaivota e a miragem de Avalon,
e os fogos celestes ateando-se
na vigília por Artur... (3)
"Apanhei-te!",
e só tive tempo de ver
uma sombra abater-se sobre mim.
Mergulhámos praia abaixo,
gritos, gargalhadas, areia na boca,
entrámos mar dentro,
um caranguejo enterrou-se na vasa,
o nosso olhar encontrou as estrelas,
brincámos...
"Apanhei-te, bandido, apanhei-te!",
e aquela voz límpida troava nos ares,
o Alexandre aos saltos sobre mim,
um dedo ameaçador apontado à minha testa.
"Rendes-te?"
"Nem penses, Alex!"
e libertei-me,
e corremos,
e chapinhámos na água,
e as balas de areia que fizemos!,
e fugimos um do outro,
e mais gritos, e gargalhadas, e ameaças,
e andámos às voltas, e aos ziguezagues,
e aos ésses, e às curvas,
e mais balas de areia,
e mais voltas, e ziguezagues, e ésses, e curvas,
e tropeçámos,
e caímos arquejantes lado a lado...
O piratinha aproximou-se...
apoiou a cabeça no meu peito,
beijou-me,
as palavras eivadas de um sorrir matreiro:
"Papá, a mamã mandou-me chamar-te para jantarmos"
Fiz-lhe cócegas na barriga,
olhei por cima do ombro
na direcção das dunas.
No alpendre,
encostada a uma trave,
ela...
cabelos soltos,
candura esguia no rosto,
gotas de champanhe gelado escorrendo dos lábios,
Steinbeck na mão,
o roupão aberto esvoaçando,
os primeiros acordes daquela música...
Abro os olhos.
Fecho-os, atordoado.
É o maldito sol
que entra a jorros pelo buraco que outrora foi uma janela.
É a brisa escaldante
que me dardeja a carne nua.
É a língua pastosa e gretada
daquele whisky reles que teimo em beber.
É aquela dor na nuca
que um dia veio e jamais me largou.
É o odor pestilento
de mijo de cão enovelado no meu suor.
É a ladainha roufenha
do tráfego na rua para lá do pátio...
Abro os olhos,
de novo e lentamente.
Tento mexer-me,
o catre geme
...eu também.
Às apalpadelas,
dou com a garrafa tombada no chão,
cuspo a rolha,
bebo um trago,
engasgo-me...
a sorte é que já não devo durar muito.
Mais um trago.
Acho montes de piada...
à lâmpada suspensa do tecto,
ao estuque a cair,
ao cancro esverdeado que vai comendo as paredes...
a máquina lá está a um canto,
abandonada há não sei que tempos,
pelos vistos há bastante,
a folha já esmaeceu...
ao lado a carta do meu editor,
boa pessoa, claro!,
por ele tudo bem,
podíamos esperar que o inferno gelasse,
o problema são os miúdos,
(os dele, claro!)
dá-lhes para crescer cada dia que passa...
Merda, que se lixe...
Pois, que se lixe!
Deixo-me ficar...
as baratas e o Litlle Mickey
farejam pelos cantos do quarto
na pista de uma côdea de pão...
muito finos,
as baratas
e o Litlle Mickey
- não tocam em whisky reles.
Outro trago,
e procuro os cigarros,
lembro-me de os espalhar pela cama
ontem à noite...
o lençol húmido,
o toque peganhento de uma liga...
fodas, a cabra mamou-me metade do whisky
e ainda me desapareceu com a porra dos cigarros...
nada a fazer,
a vida é assim...
o álcool dá-me para fazer filosofia barata,
é uma espécie de defesa,
um refúgio,
talvez uma fuga,
talvez...
talvez como aquele postal ilustrado da baía de Tóquio,
que guardo debaixo do colchão...
manhãs esquecidas a revirá-lo nas mãos,
à espera de um olhar que lá não mora,
à escuta de palavras que não podem ser ditas,
em demanda de sentimentos há muito perdidos...
o sebo comeu quase todas as palavras,
a um canto ainda resta
"Beijos. Sílvia, Pedro e Ale..."
Fico a olhar...
entorpecido,
cheio de pena de mim próprio,
amor e ódio,
lágrimas e gargalhadas histéricas
digladiando-se,
mutuamente se fertilizando,
um dilema a que o fundo da garrafa põe cobro.
Atiro-a pela janela...
Talvez hoje consiga escrevinhar qualquer coisa de jeito.
Queluz, 16-5-90
6-6-90
1 - Na mitologia céltica, Avalon era uma ilha para lá do horizonte, porto de abrigo das barcas que transportavam as almas dos cavaleiros mortos.
2 - O Santo Graal, na mitologia céltico-cristã, era a taça por onde Jesus bebeu o vinho da última ceia; diz-se que aquele que dele beber atingirá a felicidade e paz absolutas.
3 - O rei Artur, símbolo máximo da mitologia céltica.
Dezassete Primaveras
Uma menina
De sandálias
Vestidinho
Olhar que brota da alma
Sorriso meigo
E voz doce de mel.
Uma menina
Que tantas
E tantas vezes
Sentei ao colo
E por entre histórias e jogos
Percorremos em imaginação
Aquela estrada de tijoleira amarela...
Nas solarengas tardes de verão
Que me temperaram o crescer...
Ia na rua
As brumas da memória rasgaram-se
Uma singela orquídea
Chamou pelo meu nome.
As suas pétalas
Não se abriram para mim!
As suas pétalas
Não se abrem para mim!...
Cuba, 5/5/90
Penso na Tua existência
Procuro-me nela.
Tapo os olhos
Só assim te vejo.
Pico um dedo
Não sinto
Só te sinto.
Corres à procura de cigarros.
Fumaremos
Fumamos?
Fumámos.
Vieste!
Não
Não vieste.
Quando foste
No teu andar desengonçado
E evitaste à justa
A caca do cão
Eras um sonâmbulo
Um morto e um vivo
Uma alma penada quiçá
Com a vaga ideia
De um maço de SG Ventil
Para comprar.
Eu bem vi
Deixaste-te no quiosque
Ao escorrer das moedas.
Quando vieste
SG Ventil nas mãos felizes
Eras a criança
Dentro de ti
Adormecida.
Toma!
O SG Ventil e um beijo.
Caracóis ao vento
Redescobriste-te
Criança traquinas
Tomando por baloiço
Uma pernada da hera
E um banco de jardim.
Onde terá ele ficado?
O SG Ventil!
O Sol na ponta do cigarro
A dor do fogo
Fugiste ao fumámos
Fumei.
Nem o fumo te tocou
Permanecias criança de baloiços
Num jardim de bancos.
Mas não te contentaste.
Na tua traquinice voaste
De galho em galho
De banco em banco
De adeus em adeus...
Nem o fumo ousava tocar-te!
Rasgado sorriso de menino
Os teus baloiços eram
Agora
As estrelas!
Cândida Côxo e Jorge Vargas
Principe Real, Lisboa, 17/5/91
Olá, lembrei-me de ti!
Que parvoíce, que tremendo disparate
Na pequenez do meu verbo...
Porque, mais do que simples recordação
Eu sinto-te, viva e carnal
Eu amo-te, poetisa e mulher
Na corrente do meu sangue
Na vibração da minha carne
Na explosão de um orgasmo...
E desejo-te
Oh!, desejo-te loucamente...
Furiosamente
Esventrar o teu corpo
Fundir-me, aniquilar-me nele
Pela calada da noite!
E depois
Serenos, tranquilos
A fome um do outro amainada
Os corpos embriagados comungando em silêncio
Sairmos os dois para a floresta
As mãos dadas sob as luvas quentes
O bafo morno da nossa respiração desenhando elfos e duendes no ar
Um vento gelado, miudinho, perpassando pelas folhas dos abetos
O eco surdo dos nossos passos sobre a neve perdendo-se ao longe
Um veado entrevendo-se na bruma
- Que bom se fossem os portões de Avalon! -
Um beijo e amo-te
O teu nome e o meu
Cândida e Jorge
Devolvidos num murmúrio
Seguimos caminho,
Talvez acenemos a alguma rena no céu...
Um dia de Natal feliz
Na certeza de um poema na algibeira!
Queluz, 17-12-93
3 Comments:
Parabéns Jorge.
Isto merece mais do que a publicação no seu blog.
Justifica uma publicação...
Continue!
Abraço
Meu deuzzz...
Que poeta meu capitão é!
que imaginação...
sem palavras.
Jó, fiquei sem palavras!!! já m fizeste rir e quase chorar...
palavras assim valem apena, amigo!
Mais uma vez envolveste de uma maneira única, fizeste a minha nave voar mais alto... (cuidado space chocolat em missão... (Esta é para o jó entender, o resto que s lixe!!!))
É pena estas palavras estarem escondidas ao fundinho da prateleira, um voo deste "meu capitão" devia ser de primeira classe!!!
Beijos Inês
... bons vou-os ;)
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