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Novas aventuras em mim (menor)

Aventuras em mim (menor)? Escrever é aventura, é incógnita. Viagem de dedos por sonhos, desejos, fantasias, pequenas e grandes coisas sobre mim e o mundo à minha volta. Desejo de partilha, também. De sentimentos, emoções, momentos, vivências, silêncios até. Quanto ao “menor”, é uma brincadeira, um pequeno trocadilho com a nota musical Mi menor. É, também, uma medida da minha humildade, da consciência brutal das minhas limitações como escriba.

19 agosto 2017

O MAL NUNCA MORRE!

Auschwitz, Birkenau, Bergen-Belsen, Sobibor, Treblinka, Majdanek e tantos outros campos de concentração foram lugares de negação do humano e da Humanidade. Foram lugares de destruição das infinitas possibilidades que ao futuro pertencem - quantas descobertas científicas e quantas obras de arte morreram por aquelas paragens? Foram lugares de uma extrema e tresloucada perversidade – crianças de três anos directamente do comboio para a câmara de gás, crianças como cobaias do Dr. Mengele (que tinha um especial deleite em torturar gémeos), crianças e adolescentes fotografados como criminosos numa qualquer esquadra.

Os campos de concentração nazis (e fiquemos só por aqui, para não nos desviarmos do tema…) foram o tempo e o lugar em que as nossas lágrimas perderam, de vez, a inocência. Foram lugares despidos de compaixão e de decência. Foram lugares que querem chorar, ainda hoje, nos corações de toda a Humanidade – numa demanda de justiça e contra o oblívio.


Foram lugares onde se praticou o Mal por puro e simples prazer e, talvez pior, por pura e simples burocracia, por lealdade ao poder e à ordem pública, por amor aos regulamentos e à vida comezinha (antes da guerra, as mulheres varriam os passeios em frente às suas casas imediatamente após a lavagem oficial). Foram lugares onde quase nos autodestruímos para sempre, por obediência cega a uma ideia sem sentido, sem devir, estapafúrdia e cruel como nenhuma outra - a de que há seres humanos superiores, que merecem a vida e seres humanos inferiores, que só merecem a morte e o total esquecimento, porque são a peste dos vivos!


E não, ao contrário do que dizia Hannah Arendt, não era um mal banal; não era a banalidade do mal imposta naturalmente por mecânica repetição. Era um mal hediondo e absoluto, praticado de livre vontade por homens banais e que, ao fim do dia, jantavam tranquilamente e dormiam, por cruel engano do destino, o sono dos justos...


Será preciso dizer mais para classificar esta afronta à Humanidade que o título deste livro representa? Na Ariana Editora estavam todos a dormir ou apenas fizeram jus ao nome? E qual a mente tão doentia que se lembra de um título destes para um livro sobre nutrição e hábitos alimentares saudáveis, sobre a importância de uma dieta variada e equilibrada? A menos que eu esteja a ver apenas parte da história e o livro, por remota hipótese, seja realmente uma premente chamada de atenção para o que se passou na Europa de há 70 anos... Talvez a minha pobre inteligência não alcance o profundo e irredutível significado do título... Mas é a própria autora, em entrevista à revista Sábado (2 de Janeiro de 2016) que se encarrega de desfazer qualquer equívoco. Lê-se e não se acredita em tanta imbecilidade, insensibilidade e falta de memória e de sentido histórico:


"Quando resolvi "abrir os portões" de Auschwitz, sessenta anos depois, foi com a intenção de levar o leitor a recordar que, "o acto de nos alimentarmos de forma correcta é soberano e essencial à vida, para que – tal como lá - não sejamos passivamente aprisionados e exterminados, aqui, pelos nossos próprios vícios". Fiz questão de apresentar um livro com um título, a meu ver, corajoso, "um livro que não nos deixa esquecer, de forma absolutamente dramática, que o acto de nos alimentarmos é uma das necessidades mais importantes do corpo humano" - assim escrevi no prefácio"


Portanto, interpretando as suas próprias palavras, é um livro sobre dietas – aqui e hoje e em Auschwitz, há 75 anos. O problema é que dieta, seja ela qual fosse, era coisa que não existia em Auschwitz nem em qualquer outro campo de concentração. Excepto a dieta da fome e do extermínio...


Deparei-me, num comentário aqui no Facebook a este mesmo livro, com a justificação de o título ter sido o escolhido porque, sob o governo de Hitler, a fome e a destruição eram constantes (!!!), ao mesmo tempo que uma parte do mundo se empaturrava e desgraçava a saúde em maus hábitos alimentares – o que ainda hoje acontece e, por isso, cautela!!! Razão mais do que suficiente para, por portas travessas, se poder equiparar os pratos vazios de Auschwitz aos pratos alarvemente cheios de outras paragens – as duas situações sendo altamente prejudiciais à saúde... E, para não dar ponto sem nó, o autor do comentário ainda nos chicoteia com um suposto lugar-comum: se, na capa, estivesse “Fome em África” ficaríamos apáticos e mudos e quedos, aceitando como uma fatalidade as barrigas vazias e o estrondo das bombas.


Mas "fome em África" é um problema concreto, com múltiplas variáveis causais - umas naturais, outras derivadas das acções humanas. E, por isso mesmo, está nas nossas mãos combatê-la, com a nossa força de vontade, com o nosso querer, com a nossa compaixão e empatia, com todos os nossos recursos científicos e tecnológicos.


Já "dieta de Auschwitz", seja em que contexto for, é um não-evento, uma não-realidade, uma não-existência! Os pratos de batatas mais do que podres de Auschwitz são a mais macabra materialização de uma distopia motivada pelo ódio mais abjecto que conseguimos inventar: o ódio ao Outro, a negação da sua humana condição baseados no irredutível fanatismo da minha/nossa natural superioridade perante quem, por alguma obscura razão, considero/ consideramos inferior. Sim, como já disse lá em cima, em Auschwitz existia uma "dieta" - a da fome e do extermínio sistemático!


Pelos vistos, têm razão aqueles que, passados 72 anos, ainda se batem contra o esquecimento, contra o OMO que lava mais branco, contra a banalização da maior vergonha da Humanidade! Que precisados estamos da memória de Anne Frank!


(Seja-me permitido dedicar este sofrível texto ao Ricardo Morais-Pequeno. Ele e eu sabemos porquê!).